O farol Avellar

Depois do montador e restaurador Francisco Sérgio Moreira, o ano de 2016 prossegue ceifando os bastidores do cinema brasileiro com a morte do crítico e gestor José Carlos Avellar, aos 79 anos. A perda é incomensurável para o pensamento cinematográfico não só do Brasil, mas da América Latina.

Não posso falar de Avellar sem me referir à inspiração que recebi dos seus textos no Jornal do Brasil quando engatinhava na carreira de crítico de cinema. Em fins dos anos 1970, o JB tinha dois críticos titulares, Ely Azeredo e José Carlos Avellar. Os textos do Ely me indicavam o caminho da contextualização ampla dos filmes na história do cinema, na obra do diretor e no sentimento da época. Os do Avellar me enfurnavam na estrutura da obra, nos pormenores de construção, nas suas relações com as artes plásticas e com a representação que o cinema oferecia da realidade.

Avellar podia escrever pequenos tratados a partir de uma única cena, um plano ou uma frase de diálogo. Tinha uma primorosa capacidade de articulação, desenvolvida num texto leve, envolvente e “redondo”, no sentido de fechar as ideias com graça e coerência. O mesmo se dava em suas palestras, apresentadas com serena competência e lógica irretocável.

Ao que eu saiba, ele iniciou a vida jornalística como diagramador do JB, depois crítico do mesmo jornal por mais de 25 anos. Foi editor da revista Filme Cultura e um dos fundadores, junto comigo, da revista Cinemais. Teve também uma importante carreira de gestor na área cinematográfica, tendo ocupado a diretoria de assuntos culturais da Embrafilme, a vice-diretoria da Cinemateca do MAM, uma subsecretaria de cinema do governo do Estado do Rio, a diretoria da Riofilme em seu período mais fértil, a presidência do conselho do Programa Petrobrás Cinema e, mais recentemente, a curadoria de cinema do Instituto Moreira Salles. Como consultor, atuou junto aos festivais de Berlim, San Sebastián, Montreal e Gramado.

O legado ensaístico e teórico de Avellar fica em seis livros, incontáveis textos para catálogos, livros coletivos e revistas virtuais como a mexicana El Ojo que Piensa (infelizmente descontinuada).  O livro A Ponte Clandestina é um inestimável compêndio analítico das teorias de cinema construídas por autores latino-americanos. Já O Cinema Dilacerado e O Chão da Palavra abordam o cinema brasileiro pelas óticas, respectivamente, da resistência à ditadura e das adaptações literárias.

Seu amor pela pintura e pelas expressões gráficas transparecia com frequência na maneira de se aproximar da forma e do sentido dos filmes – desde seus famosos estudos sobre Eisenstein e Glauber Rocha até um texto recente sobre Ùltimas Conversas, de Eduardo Coutinho, norteado pelos paralelos com a série O Artista e seu Modelo, de Pablo Picasso.

A Wikipedia assim resume seu trabalho bissexto no “outro lado do balcão”, nos anos 1960 e 70: estreou na direção com o curta Treiler (1965) e codirigiu os filmes coletivos Destruição Cerebral (1977) e Viver É uma Festa (1972); foi diretor de fotografia do clássico média Manhã Cinzenta (1969), de Olney São Paulo, e do longa Triste Trópico (1974), de Arthur Omar; produziu o documentário Passe Livre (1974), de Oswaldo Caldeira, e montou Iaô (1976), de Geraldo Sarno. Foi ainda professor e coordenador do cineclube da Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

Com sua saída de cena, após uma luta de muitos meses contra o câncer, Avellar deixa um buraco sem fundo na reflexão crítica e na organização do cinema entre nós. A lacuna não é menor entre seus inúmeros amigos e admiradores. De minha parte, é como se visse um dos meus faróis se apagar. A sorte é que seus textos ficarão, sempre inteligentes e sólidos ao dissecar aquilo que “bate na tela”, como ele gostava de escrever.

Se levou consigo a inseparável Laika, estará mais perto para fotografar as nuvens que ele tanto amava.

5 comentários sobre “O farol Avellar

  1. Bela homenagem, Carlinhos. Muito triste mesmo não poder mais contar com a inteligência e generosidade do Avellar. Um grande pensador e apaixonado do cinema brasileiro. Devo a ele a minha entrada na ficção (Latitude Zero) portanto devo muito. Como presidente da Riofilme, Avellar bancou os primeiros longas da nova geração paulista dos anos 90 (Os Matadores do Beto Brant, Céu de Estrelas da Tata Amaral, Kenoma da Lili Caffé, entre outros). Nosso embaixador na Berlinale e outros festivais internacionais. Um libertário radical que dedicou a vida ao cinema e ao sonho de um mundo mais justo. Nestes tempos sombrios de avanço reacionário, vai fazer muito mais falta ainda!

  2. Linda dedicatoria a um cinefilo/cineassta/critico, que foi instrumental ns difusao do que de molhor se fez no cinema brasileiro e o que de melhor foi feito na resistencia a ditadura. Sua participacao na cinemateca e ans posteriores funcoes que culminaram com sua impecavel gestao no ims so mke faz lamentar a sua perda. para a nova geracao, ele foi mrealmente um farol, analisando os filmes obejtivamente, mas sempre engolindo uma lagrima de emocao.

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